Chamar mulheres de “pessoas que menstruam” é misoginia

Andreia Nobre
QG Feminista
Published in
5 min readDec 8, 2022

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Mulheres são humanas do sexo feminino. Só são meninas quem nasce com anatomia feminina. Só é possível ser uma Mulher, uma fêmea adulta humana, nascendo com a anatomia feminina (vulva, vagina, ovários, trompas de falópio, útero, dutos mamários) e sobrevivendo até se tornar adulta.

Não importa se o aparelho reprodutor feminino de uma Mulher não se desenvolveu completamente intra-útero, como no caso das Mulheres e Meninas nascidas com Diferenças no Desenvolvimento Sexual (que muitos ainda chamam de pessoas “intersexo”). Essas são Mulheres que podem ter nascido sem ovários, sem útero, sem Trompas de Falópio. O que determina o sexo de uma pessoa é o caminho reprodutivo que o corpo dela tomou ao se desenvolver intra-útero. Se o sistema reprodutor de um indivíduo se desenvolveu para ter a capacidade de produzir óvulos (mesmo que não produza) e a capacidade de gestar (mesmo que não possa) essa pessoa é do sexo feminino. Se o sistema reprodutor de um indivíduo se desenvolveu para produzir esperma (mesmo que não produza) esse indivíduo é do sexo masculino. O sexo de um indivíduo não é “designado”, aleatoriamente, ao nascer. O sexo de um indivíduo é observado e registrado ao nascimento. Ao nascimento, uma vulva é o indicativo de que um corpo se desenvolveu intra-útero com anatomia feminina, um pênis é o indicativo de que um corpo se desenvolveu intra-útero com anatomia masculina.

Também não importa se uma Mulher tem a capacidade de menstruar ou não. Menstruar é uma das muitas características biológicas de um corpo com anatomia feminina. O que importa para se determinar se uma pessoa nasceu no sexo feminino e, portanto, é uma Menina ou uma Mulher, é o caminho que a função reprodutiva tomou: o de potencialmente produzir óvulos e a capacidade potencial de gestar.

A expressão “pessoas que menstruam” é misógina — é ódio corpo feminino. Em primeiro lugar, temos de levar em consideração que as Mulheres possuem várias características biológicas por nascerem com anatomia feminina, sendo a menstruação apenas uma delas. Chamar Mulheres de “pessoas que menstruam” implica que só o que as Mulheres fazem na vida é menstruar, o que é biologicamente impossível — nenhuma Mulher jamais menstruou 24 horas por dia desde o nascimento até a morte, sem pausa. A expressão, portanto, reduz Mulheres à uma de suas muitas características biológicas — a capacidade potencial de menstruar — como se menstruar fosse a única coisa que Mulheres fizessem durante toda uma vida.

Uma Mulher não é somente uma fêmea adulta humana que menstrua e gesta, mas também é um ser humano do sexo feminino, uma pessoa nascida com anatomia feminina. E embora nem toda Mulher menstrua ou gesta, somente Mulheres menstruam ou gestam. Porém, nenhuma Mulher que menstrua ou gesta, menstrua ou gesta a vida toda. Nenhuma Mulher jamais passou pelo mundo apenas menstruando e gestando. Nenhuma Mulher passou a vida toda menstruando e gestando desde o nascimento até a velhice. Nem mesmo nos seus anos férteis.

Em segundo lugar, a expressão “pessoas que menstruam” é misógina porque essa expressão implica que seres humanos dos dois sexos têm o potencial de menstruar, o que é biologicamente impossível. Se “pessoas” menstruam, então qualquer pessoa, de qualquer sexo, deveria ter o potencial de menstruar. Mas a realidade material dos corpos femininos é que somente as Mulheres têm esse potencial, por nascerem no sexo feminino, porque menstruação é a descamação das paredes internas do útero quando não há fecundação.

Somente as Mulheres nascem com útero, e têm o potencial de produzir óvulos, que serão liberados para as trompas de falópio, a caminho do útero, e portanto somente Mulheres nascem como o potencial de menstruar. Se referir a Mulheres como “pessoas que menstruam” apaga a realidade material de se nascer em um corpo com anatomia feminina.

Em terceiro lugar, a expressão “pessoas que menstruam” é misógina porque é desumanizadora. Ao reduzir a Mulher à uma de suas várias características biológicas — a menstruação, neste caso — a expressão abre caminho para que termos ainda mais desumanizadores sejam usados para se referir a Mulheres. A expressão “pessoas que menstruam” não é inofensiva e muito menos “inclusiva” para mulheres. Essa linguagem é, na verdade, uma linguagem excludente da realidade material de ser nascer com anatomia feminina. Nos últimos anos, temos visto Mulheres serem serem referidas como “menstruadores” (que reduz Mulheres à sua capacidade biológica de menstruar) ou como “portadores de útero” (que reduz Mulheres a objetos não humanos que “portam” úteros), ou como “Mulheres Cis”, que reduz as Mulheres a uma subcategoria de mulheres “nascidas com anatomia feminina”, como se existissem Mulheres nascidas com anatomia feminina e Mulheres nascidas com anatomia masculina. Não existem mulheres nascidas com anatomia masculina.

Quando se permite e se adota linguagem incorreta para se referir a mulheres, homens misóginos, principalmente os que são consumidores pesados de pornografia, adotam linguagem desumanizadora para se referir a Mulheres, muitas vezes com aval constitucional e legal. Chamar mulheres de “pessoas que menstruam” abre as portas para que esses homens se refiram a mulheres com expressões vindas da pornografia, como “pessoas com vagina ou de vulva”, “portadores de vagina ou de vulva”, “Mulheres Cis”, ou ainda pior: “corpos com buceta” ou “pessoas com buraco da frente.” Mulheres não são “pessoas com vagina/vulva” ou “pessoas com buraco da frente.”

Desumanizar as mulheres é uma tática patriarcal que deve ser rejeitada e eliminada. Desumanizar é destituir alguém ou um grupo de pessoas de sua humanidade. Desumanizar é objetificar. É retirar a humanidade de alguém ou de um grupo de pessoas, para que sejam considerados objetos que, assim, podem ser usados e descartados.

Reduzir Mulheres às suas funções e características biológicas é assédio psicológico, e se referir às mulheres nomeando-as pelas suas partes íntimas (como vagina e vulva) é assédio sexual contra Mulheres e Meninas. É perturbador se referir a Mulheres e Meninas que sobreviveram a um abuso sexual de “pessoas com buraco da frente”, ou se referir a Mulheres e Meninas que sobreviveram mutilação genital feminina, de “pessoas com vagina” ou “portadores de vulva”. Ou chamar Mulheres grávidas — inclusive as Mulheres que desejam terminar uma gestação — de “portadores de útero”, como se Mulheres fossem apenas “incubadoras ambulantes”.

A linguagem desumanizadora contida em expressões como “pessoas que menstruam” perpetua a misoginia e deve ser rejeitada. A luta contra a objetificação feminina é uma das principais pautas do movimento pelos direitos das Mulheres. O senso de direito que os homens têm sobre os corpos, a sexualidade e a capacidade reprodutiva feminina, perpetuado através da objetificação dos corpos femininos, deve ser combatido em todos os campos para proteger Mulheres e Meninas de abuso sexual, físico e psicológico. Mulheres têm o direito de se autodefinirem como Mulheres — e não como “Mulheres Cis” — e de rejeitar linguagem desumanizadora que as reduz às suas funções e características biológicas, ou às suas partes íntimas, ou reduz as mulheres a uma subcategoria da sua própria classe sexual.

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Andreia Nobre
QG Feminista

Jornalista, escritora, autora do Guia (mal-humorado) do Feminismo Radical e do Guia (mal-humorado) da Maternagem